Postagens

Mostrando postagens de setembro, 2022

MENINO CHORANDO NA NOITE - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Imagem
Na noite lenta e morna, morta noite sem ruído, um menino chora.  O choro atrás da parede, a luz atrás da vidraça perdem-se na sombra  dos passos abafados, das vozes extenuadas.  E no entanto se ouve até o rumor da gota de remédio caindo na colher.  Um menino chora na noite, atrás da parede, atrás da rua, longe um menino chora, em outra cidade talvez, talvez em outro mundo.  E vejo a mão que levanta a colher, enquanto a outra sustenta a cabeça e vejo o fio oleoso que escorre do queixo do menino, escorre pela rua, escorre pela cidade (um fio apenas).  E não há ninguém mais no mundo a não ser esse menino chorando.

AMAR POR AUSÊNCIA - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Imagem
Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar?  amar e esquecer, amar e malamar, amar, desamar, amar?  sempre, e até de olhos vidrados, amar?  Que pode, pergunto, o ser amoroso, sozinho,  em rotação universal, senão rodar também, e amar?  amar o que o amar traz à praia, o que ele sepulta,  e o que, na brisa marinha, é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?  Amar solenemente as palmas do deserto,  o que é entrega ou adoração expectante,  e amar o inóspito, o áspero, um vaso sem flor,  um chão de ferro, e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.  Este o nosso destino: amor sem conta, distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,  doação ilimitada a uma completa ingratidão,  e na concha vazia do amor a procura medrosa, paciente, de mais e mais amor.  Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura  nossa amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.