segunda-feira, 19 de maio de 2025

Receita de Despedida




Sonhei que deitava com ele de novo.
Não por desejo, mas por memória. 
Uma cama de casal, dois corpos distantes, 
e um gesto insólito: 
jogávamos cenouras e batatas picadas sobre nós, 
como quem planta no corpo a raiz do que foi. 
Depois cobrimos tudo com um pano branco. 
Branco como os lençóis que selam pactos 
ou como os olhos de quem aceita o fim sem briga. 
Ali, entre legumes e silêncios, cozinhava-se algo que não era comida: era o passado querendo virar caldo. Ele se levantou apressado. 
Disse que Joaquim — o irmão que já se foi — 
tinha adorado a sopa. 
E eu entendi: algumas coisas precisam morrer para serem digeridas. 
Outras, só descansam quando alguém as reconhece como oferenda. 
Acordei com gosto de terra na boca. Mas sem dor. 
Como se algo em mim finalmente tivesse se nutrido 
do que antes era indigestão.
                                                                                           —  Nikelly Silva



sábado, 12 de abril de 2025

Entre os Espinhos da Alma






Minha alma,  
te encontro hoje no espelho do tempo, 
onde as cicatrizes florescem como lembranças 
e a dor veste o perfume de um jardim esquecido. 
Você, rosa ferida, 
carregou espinhos que não escolheu, 
mas nunca deixou de ser flor. 
Cada golpe que rasgou suas pétalas 
despertou uma força adormecida, 
uma raiz que cresceu mais fundo, 
segurando firme o chão que te faltava. 
Os ventos que te dobraram, 
os olhares que te julgaram, 
foram só o açoite de uma tempestade 
que não sabia o quanto você resistiria. 
Rosa, 
a mágoa do abandono marcou seu caule,
mas não arrancou a seiva que te fazia viva. 
Na ausência dos braços que deveriam proteger, 
você se curvou sobre si mesma, aprendendo a abraçar o vazio
e a criar, na solidão, sua própria primavera. 
Hoje, te digo: 
não foi a falta de amor que te definiu, 
mas a coragem de seguir desabrochando 
mesmo quando o jardim era árido.   

             Ecos de 2008. - Nikelly Silva



Meu pequeno Léxico