sexta-feira, 7 de junho de 2024

Ama-me, de Hilda Hilst

Aos amantes é lícito a voz desvanecida.

Quando acordares, um só murmúrio sobre o teu ouvido:

Ama-me. Alguém dentro de mim dirá: não é tempo, senhora,

Recolhe tuas papoulas, teus narcisos. Não vês

Que sobre o muro dos mortos a garganta do mundo

Ronda escurecida?

... 

Não é tempo, senhora. Ave, moinho e vento

Num vórtice de sombra. Podes cantar de amor

Quando tudo anoitece? Antes lamenta

Essa teia de seda que a garganta tece.

...

Ama-me. Desvaneço e suplico. Aos amantes é lícito

Vertigens e pedidos. E é tão grande a minha fome

Tão intenso meu canto, tão flamante meu preclaro tecido

Que o mundo inteiro, amor, há de cantar comigo.




sexta-feira, 17 de maio de 2024

Sinfonia da Alma: Jardim dos Mistérios - Nikelly Silva



O espírito é um jardim, solo da essência,

Sementes do saber, flores da consciência.

Cada pensamento, uma flor a desabrochar,

No jardim da alma, a vida a reverberar.


Em cada pétala, a luz da sabedoria,

Raízes no mistério, na eterna sinfonia.

Cultivamos sonhos, como jardineiros do ser,

O espírito floresce, deixa o coração renascer.


Entre as folhas da introspecção, o silêncio semeia,

No solo da serenidade, a verdade viceja.

O espírito é um jardim, com segredos a desvendar,

No eco das folhas, a sabedoria a murmurar.






CXXI - A MORTE DOS AMANTES



Teremos leitos plenos de essências ligeiras, 
Divãs assim profundos como mausoléus, 
E flores muito estranhas sobre prateleiras, 
Pra nós desabrochadas sob mais lindos céus. 

Pondo em uso à porfia as chamas derradeiras, 
Os nossos corações serão dois fogaréus 
Que irão reverberar suas luzes sem véus 
Em nossas duas almas, imagens parceiras. 

Numa noite de rosa e de azul transcendente, 
Trocaremos lampejo único e ardente, 
Como um longo soluço pejado de adeus; 

E então, mais tarde, um Anjo, entreabrindo as portas 
Irá reanimar, fiel e sorridente, 
Os espelhos opacos e as chamas já mortas. 

- As flores do Mal, Charles Baudelaire.

sábado, 11 de maio de 2024

Amar ou ter amado. Isso é o suficiente. Não peça nada mais. Não há outra pérola a ser encontrada nas dobras escuras da vida.

Pobres daqueles que só amam corpos, formas e aparências. A morte levará tudo deles. Procure amar almas, você as encontrará de novo. - Os Miseráveis, Victor Hugo.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Conto: "Nóis Mudemo" - Fidêncio Bogo

O ônibus da Transbrasiliana deslizava manso pela Belém-Brasília rumo ao Porto Nacional. Era abril, mês das derradeiras chuvas. No céu, uma luazona enorme pra namorado nenhum botar defeito. Sob o luar generoso, o cerrado verdejante era um presépio, todo poesia e misticismo. As aulas tinham começado numa segunda-feira. Escola de periferia, classes heterogêneas, retardatários. Entre eles, uma criança crescida, quase um rapaz. - Por que você faltou esses dias todos? - É que nóis mudemo onti, fessora. Nóis veio da fazenda. Risadinhas da turma. - Não se diz “nóis mudemo” menino! A gente deve dizer: nós mudamos, tá? - Tá fessora! No recreio as chacotas dos colegas: Oi, nóis mudemo! Até amanhã, nóis mudemo! No dia seguinte, a mesma coisa: risadinhas, cochichos, gozações. - Pai, não vô mais pra escola! - Oxente! Módi quê? Ouvida a história, o pai coçou a cabeça e disse: - Meu fio, num deixa a escola por uma bobagem dessa! Não liga pras gozações da mininada! Logo eles esquece. Não esqueceram. Na quarta-feira, dei pela falta do menino. Ele não apareceu no resto da semana, nem na segunda-feira seguinte. Aí me dei conta de que eu nem sabia o nome dele. Procurei no diário de classe e soube que se chamava Lúcio – Lúcio Rodrigues Barbosa. Achei o endereço. Longe, um dos últimos casebres do bairro. Fui lá, uma tarde. O rapaz tinha partido no dia anterior para casa de um tio, no sul do Pará. -É, professora, meu tio não aguentou as gozações da mininada. Eu tentei fazê ele continuá, mas não teve jeito. Ele tava chateado demais. Bosta de vida! Eu devia di tê ficado na fazenda coa famia. Na cidade nóis não tem veis. Nóis fala tudo errado. Inexperiente, confusa, sem saber o que dizer. Engoli em seco e me despedi. O episódio ocorrera há dezessete anos e tinha caído em total esquecimento, ao menos de minha parte. Uma tarde, um povoado à beira da Belém-Brasília, eu ia pegar o ônibus, quando alguém me chamou. Olhei e vi, acenando para mim, um rapaz pobremente vestido, magro, com aparência doentia. -O que é, moço? -A senhora não se lembra de mim, fessora? Olhei para ele, dei tratos à bola. Reconstitui num momento meus longos anos de sacerdócio, digo de magistério. Tudo escuro. -Não me lembro não, moço. Você me conhece? De onde? Foi meu aluno? Como se chama? Para tantas perguntas, uma resposta lacônica: -Eu sou “Nóis mudemo”, lembra? Comecei a tremer. -Sim, moço. Agora lembro. Como era mesmo o seu nome? -Lúcio – Lúcio Rodrigues Barbosa. - 0 que aconteceu? Ah! Fessora! É mais fácil dizê o que não aconteceu. Comi o pão que o diabo amasso. E êta diabo bom de padaria! Fui garimpeiro. Fui boia-fria, um “gato” me arrecadou e levou num caminhão pruma fazenda no meio da mata. Lá trabaiei como escravo, passei fome, fui baleado quando conseguir fugi. Peguei tudo quando é doença. Até na cadeia já fui pará. Nóis ignorante as veis fais coisa sem querê fazê. A escola fais uma farta danada. Eu não devia tê saído daquele jeito, fessora, mais não aguentei as gozação da turma. Eu vi logo que nunca ia consegui falá direito. Ainda hoje não sei. -Meu Deus! Aquela revelação me virou pelo avesso. Foi demais para mim. Descontrolada, comecei a soluçar convulsivamente. Como eu podia ter sido tão burra e má? E abracei o rapaz, o que restava do rapaz que me olhava atarantado. O ônibus buzinou com insistência. - O rapaz afastou-me se si suavemente. - Chora não, fessora! A senhora não tem cura. Como? Eu não tenho culpa? Deus do céu! Entrei no ônibus apinhado. Cem olhos eram cem flechas vingadoras apontadas para mim. O ônibus partiu. Pensei na minha sala de aula. Eu era uma assassina a caminho da guilhotina. Hoje tenho raiva da gramática. Eu mudo, tu mudas, ele muda, nós mudamos... Super usada, mal usada, abusada, ela é uma guilhotina dentro da escola. A gramática faz gato e sapato da língua materna, a língua que a criança aprendeu com seus pais e irmãos e colegas – e se torna o terror dos alunos. Em vez de estimular e fazer crescer, comunicando, ela reprime e oprime, cobrando centenas de regrinhas estúpidas para aquela idade. E os lúcios da vida, os milhares lúcios da periferia e do interior, barrados nas salas de aula: “Não é assim que se diz, menino!” Como se o professor quisesse dizer: “Você está errado! Os seus pais estão errados! Seus irmãos e amigos e vizinhos estão errados! A certa sou eu! Imite-me! Copie-me! Fale como eu! Você não seja você! Renegue suas raízes! Diminua-se ! Desfigure-se! Fique no seu lugar! Seja uma sombra!” E siga desarmado para o matadouro da vida... (Fidêncio Bogo)

Meu pequeno Léxico