❝ Escrevo no intervalo entre o que me atravessa e o que consigo dizer. Cada palavra vem do avesso do peito, resgate de afetos partidos e emoções sem forma. Entre o silêncio do não dito e o ruído do mal interpretado, lanço pontes — frágeis e poéticas — entre mim e você. Este é um lugar de pausas fundas e verbos expostos. Bem-vinde às bordas da palavra, onde o sentir encontra abrigo. ❞
quarta-feira, 14 de julho de 2021
Eu - Florbela Espanca
SONETO XVII (...) Pablo Nerud
E Eis – Clarice Lispector
![]() |
(pintura de Ivan Alifan) |
E a verdade espantada é que eu sempre estive só de ti e não sabia
Eu agora sei, eu sou só
Eu e minha liberdade que não sei usar
Mas, eu assumo a minha solidão
Sou só, e tenho que viver uma certa glória íntima e silenciosa
Guardo teu nome em segredo
Preciso de segredos para viver
E eis que depois de uma tarde de quem sou eu
E de acordar a uma hora da madrugada em desespero
Eis que as três horas da madrugada, acordei e me encontrei
Fui ao encontro de mim, calma, alegre, plenitude sem fulminação
Simplesmente eu sou eu, e você é você
É lindo, é vasto, vai durar
Eu não sei muito bem o que vou fazer em seguida
Mas, por enquanto, olha pra mim e me ama
Não, tu olhas pra ti e te amas
É o que está certo
Eu sou antes, eu sou quase, eu sou nunca
E tudo isso ganhei ao deixar de te amar
Escuta! Eu te deixo ser… Deixa-me ser!
Aprendimentos – Manoel de Barros
![]() |
(pintura de Jan van Kessel) |
o caminho que o homem percorre para se conhecer.
Sócrates fez o seu caminho de cultura e ao fim
falou que só sabia que não sabia de nada. Não tinha
as certezas científicas. Mas que aprendera coisas
di-menor com a natureza. Aprendeu que as folhas
das árvores servem para nos ensinar a cair sem
alardes. Disse que fosse ele caracol vegetado
sobre pedras, ele iria gostar. Iria certamente
aprender o idioma que as rãs falam com as águas
e ia conversar com as rãs. E gostasse mais de
ensinar que a exuberância maior está nos insetos
do que nas paisagens. Seu rosto tinha um lado de
ave. Por isso ele podia conhecer todos os pássaros
do mundo pelo coração de seus cantos. Estudara
nos livros demais. Porém aprendia melhor no ver,
no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar. Chegou
por vezes de alcançar o sotaque das origens.
Se admirava de como um grilo sozinho, um só pequeno
grilo, podia desmontar os silêncios de uma noite!
Eu vivi antigamente com Sócrates, Platão, Aristóteles –
esse pessoal. Eles falavam nas aulas: Quem se
aproxima das origens se renova. Píndaro falava pra
mim que usava todos os fósseis linguísticos que
achava para renovar sua poesia. Os mestres pregavam
que o fascínio poético vem das raízes da fala.
Sócrates falava que as expressões mais eróticas
são donzelas. E que a Beleza se explica melhor
por não haver razão nenhuma nela. O que mais eu sei
sobre Sócrates é que ele viveu uma ascese de mosca.
Agora Escrevo Pássaros – Julio Cortázar
Agora
escrevo pássaros.
Não
os vejo chegar, não escolho,
de
repente estão aí,
um
bando de palavras
a
pousar
uma
por
uma
nos
arames da página,
entre
chilreios e bicadas,
chuva
de asas,
e
eu sem pão para dar,
tão
somente deixo-os vir.
Talvez
seja isto uma árvore,
ou
quem sabe, o amor.
A Vida – Augusto Branco
Já
perdoei erros quase imperdoáveis,
tentei
substituir pessoas insubstituíveis
e
esquecer pessoas inesquecíveis.
Já
fiz coisas por impulso,
já
me decepcionei com pessoas
que
eu nunca pensei que iriam me decepcionar,
mas
também já decepcionei alguém.
Já
abracei pra proteger,
já
dei risada quando não podia,
fiz
amigos eternos,
e
amigos que eu nunca mais vi.
Amei
e fui amado,
mas
também já fui rejeitado,
fui
amado e não amei.
Já
gritei e pulei de tanta felicidade,
já
vivi de amor e fiz juras eternas,
e
quebrei a cara muitas vezes!
Já
chorei ouvindo música e vendo fotos,
já
liguei só para escutar uma voz,
me
apaixonei por um sorriso,
já
pensei que fosse morrer de tanta saudade
e
tive medo de perder alguém especial (e acabei perdendo).
Mas
vivi!
E
ainda vivo!
Não
passo pela vida.
E
você também não deveria passar!
Viva!!
Bom
mesmo é ir à luta com determinação,
abraçar
a vida com paixão,
perder
com classe
e
vencer com ousadia,
porque
o mundo pertence a quem se atreve
e
a vida é MUITO para ser insignificante.
Nota:
Poema com várias versões na internet e atribuído erroneamente a Charles
Chaplin, Luis Fernando Veríssimo e outros.
OS HOMENS OCOS - T.S.Eliot
Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns
nos outros amparados
O
elmo cheio de nada. Ai de nós!
Nossas
vozes dessecadas,
Quando
juntos sussurramos,
São
quietas e inexpressas
Como
o vento na relva seca
Ou
pés de ratos sobre cacos
Em
nossa adega evaporada
Fôrma
sem forma, sombra sem cor
Força
paralisada, gesto sem vigor;
Aqueles
que atravessaram
De
olhos retos, para o outro reino da morte
Nos
recordam - se o fazem - não como violentas
Almas
danadas, mas apenas
Como
os homens ocos
Os
homens empalhados.
II
Os
olhos que temo encontrar em sonhos
No
reino de sonho da morte
Estes
não aparecem:
Lá,
os olhos são como a lâmina
Do
sol nos ossos de uma coluna
Lá,
uma árvore brande os ramos
E
as vozes estão no frêmito
Do
vento que está cantando
Mais
distantes e solenes
Que
uma estrela agonizante.
Que
eu demais não me aproxime
Do
reino de sonho da morte
Que
eu possa trajar ainda
Esses
tácitos disfarces
Pele
de rato, plumas de corvo, estacas cruzadas
E
comportar-me num campo
Como
o vento se comporta
Nem
mais um passo
-
Não este encontro derradeiro
No
reino crepuscular
III
Esta
é a terra morta
Esta
é a terra do cacto
Aqui
as imagens de pedra
Estão
eretas, aqui recebem elas
A
súplica da mão de um morto
Sob
o lampejo de uma estrela agonizante.
E
nisto consiste
O
outro reino da morte:
Despertando
sozinhos
À
hora em que estamos
Trêmulos
de ternura
Os
lábios que beijariam
Rezam
as pedras quebradas.
IV
Os
olhos não estão aqui
Aqui
os olhos não brilham
Neste
vale de estrelas tíbias
Neste
vale desvalido
Esta
mandíbula em ruínas de nossos reinos perdidos
Neste
último sítio de encontros
Juntos
tateamos
Todos
à fala esquivos
Reunidos
na praia do túrgido rio
Sem
nada ver, a não ser
Que
os olhos reapareçam
Como
a estrela perpétua
Rosa
multifoliada
Do
reino em sombras da morte
A
única esperança
De
homens vazios.
V
Aqui
rondamos a figueira-brava
Figueira-brava
figueira-brava
Aqui
rondamos a figueira-brava
Às
cinco em ponto da madrugada
Entre
a idéia
E
a realidade
Entre
o movimento
E
a ação
Tomba
a Sombra
Porque Teu é o Reino
Entre
a concepção
E
a criação
Entre
a emoção
E
a reação
Tomba
a Sombra
A vida é muito longa
Entre
o desejo
E
o espasmo
Entre
a potência
E
a existência
Entre
a essência
E
a descendência
Tomba
a Sombra
Porque Teu é o Reino
Porque
Teu é
A
vida é
Porque
Teu é o
Assim
expira o mundo
Assim
expira o mundo
Assim
expira o mundo
Não
com uma explosão, mas com um suspiro.
(tradução: Ivan Junqueira)
“Abrigo na tempestade de areia”, Calvin Lai
Em certas ocasiões, o
destino se assemelha a uma pequena tempestade de areia, cujo curso sempre se
altera. Você procura fugir dela e orienta seus passos noutra direção. Mas
então, a tempestade também muda de direção e o segue. Você muda mais uma vez
seu rumo. A tempestade faz o mesmo e o acompanha. As mudanças se repetem muitas
e muitas vezes, como num balé macabro que se dança com a deusa da morte antes
do alvorecer. Isso acontece porque a tempestade não é algo independente, vindo
de um local distante. A tempestade é você mesmo. Algo que existe em seu íntimo.
Portanto, o único recurso que lhe resta é se conformar e corajosamente pôr um
pé dentro dela, tapar olhos e ouvidos com firmeza a fim de evitar que se encham
de areia e atravessá-la passo a passo até emergir do outro lado. É muito
provável que lá dentro não haja sol, nem lua, nem norte e, em determinados
momentos, nem hora certa. O que há são apenas grãos de areia finos e brancos
como osso moído dançando vertiginosamente no espaço. Imagine uma tempestade de
areia desse jeito. E você vai atravessá-la, claro.
Falo da tempestade. Dessa
tempestade violenta, metafísica e simbólica. Metafísica e simbólica, mas ao
mesmo tempo cortante como mil navalhas, ela rasga a carne sem piedade. Muita
gente verteu sangue dentro dela, e você mesmo verterá o seu. Sangue rubro e
morno. E você vai apará-lo com suas próprias mãos em concha. O seu sangue e
também o de outras pessoas.
E, quando a tempestade
passar, na certa lhe será difícil entender como conseguiu atravessá-la e ainda
sobreviver. Aliás, nem saberá com certeza se ela realmente passou. Uma coisa
porém é certa:
Ao emergir do outro lado
da tempestade, você já não será o mesmo de quando nela entrou.
Exatamente, esse é o
sentido da tempestade de areia…
Haruki Murakami
do livro “Kafka à
Beira-Mar”
Uma Rosa Para Emília - William Faulkner
Quando Miss Emily Grierson morreu, toda
a nossa cidade compareceu ao enterro: os homens em atenção a essa espécie de
carinho respeitoso que se tem por um monumento tombado; as mulheres movidas
pela curiosidade de ver o interior de sua casa, onde ninguém entrara nos
últimos dez anos, exceto um velho negro, ao mesmo tempo cozinheiro e
jardineiro.
Era um casarão quadrado, de madeira,
outrora branco, decorado de cúpulas, de flechas, de balcões, no estilo
pesadamente frívolo da época de 1870, situado na rua que já tinha sido a mais
distinta da cidade. Mas as garagens e as debulhadoras de algodão,
multiplicando-se em derredor, acabaram por fazer desaparecer até os nomes
augustos daquele bairro. A casa de Miss Emily era a única, levantando sua
decrepitude teimosa e faceira acima dos vagões de algodão e das bombas de
gasolina. Emily tinha ido juntar-se aos representantes daqueles nomes augustos,
no cemitério adormecido sob os cedros, onde jaziam entre os túmulos
enfileirados e anônimos, dos soldados da União e dos Confederados mortos no campo
de batalha de Jefferson.
Viva, Miss Emily fora uma tradição, um
dever e um aborrecimento: espécie de obrigação hereditária, pesando sobre a
cidade desde o dia em que, em 1894, o Coronel Sartóris (o prefeito que baixou o
decreto proibindo às negras saírem à rua sem avental) a isentara do pagamento
de impostos, isenção definitiva, que datava da morte de seu pai. Isto não quer
dizer que Miss Emily aceitasse a caridade. O Coronel Sartóris inventara a
complicada história de um empréstimo em dinheiro, feito pelo pai de Miss Emily
à cidade e que a cidade, por conveniência própria, preferia reembolsar dessa
maneira. Só um homem da geração e com as ideias do Coronel Sartóris poderia ter
imaginado semelhante coisa, e só uma mulher poderia ter acreditado.
Quando a geração seguinte, com suas
ideias modernas, deu, por sua vez, prefeitos e intendentes municipais, essa
concessão provocou alguns descontentamentos. No primeiro dia do ano, dirigiram
a Miss Emily uma notificação de impostos. Fevereiro chegou, sem trazer resposta.
Enviaram-lhe uma carta oficial, pedindo-lhe para passar, quando pudesse, no
gabinete do delegado. Na semana seguinte, o próprio prefeito lhe escreveu,
oferecendo-se para ir, em pessoa, à sua casa, ou para mandar buscá-la no seu
carro particular. Recebeu, como resposta, uma folha de papel de feitio arcaico,
escrita com tinta desbotada, numa letra miúda e fluente, comunicando-lhe que
não saía mais de casa. A notificação de pagamento de imposto vinha inclusa, sem
comentários.
O Conselho Municipal reuniu-se em
sessão extraordinária. Uma delegação dirigiu-se à sua casa e bateu naquela
porta que nenhum visitante transpusera desde que, oito ou dez anos antes, Miss
Emily deixara de dar lições de pintura em porcelana. Os membros da delegação
foram introduzidos num saguão escuro, de onde uma escada se projetava para as
sombras ainda mais que espessas do andar superior. Havia em tudo um cheiro de
poeira, de guardado, de coisas que nunca são usadas -um cheiro de mofo e
umidade. O negro conduziu-os ao salão, de mobiliário pesado, forrado de couro.
Quando o negro abriu as cortinas de uma das janelas, viram que o couro estava
estalado, descascando e, ao se sentarem, uma nuvem leve de pó subiu-lhe
preguiçosamente em volta das coxas e se espalhou em círculos vagarosos, desenrolando-se,
desagregada, na única réstia de sol. Num cavalete de moldura dourada, perto da
lareira, via-se o retrato a carvão do pai de Miss Emily.
Levantaram-se à sua entrada. Era uma
mulherzinha pequena e gorda, vestida de preto, com uma fina corrente de ouro
descendo-lhe do pescoço até a cintura, onde desaparecia no cós da saia. Tinha a
ossatura pequena e delicada; talvez, por isso, o que em outra pessoa seria
apenas gordura, parecia, nela, obesidade. Dava a impressão de estar inchada,
como um cadáver muito tempo submerso numa água estagnada; tinha, mesmo, de um
afogado, a carne lívida e balofa. Seus olhos, perdidos nas intumescências de
sua face, lembravam dois pedacinhos de carvão enfiados numa bola de massa e iam
de um rosto a outro, enquanto os visitantes expunham o caso.
Não mandou que sentassem. Conservou-se,
apenas, em pé no limiar da sala, e esperou tranquilamente que o porta-voz se
interrompesse, balbuciando. Então, puderam ouvir o tic-tac do relógio
invisível, preso na ponta de sua corrente de ouro.
Sua voz era seca e fria:
– Não tenho impostos a pagar em Jefferson. O Coronel Sartóris me
explicou isso. Talvez um dos senhores possa consultar os arquivos da cidade e
dar satisfações aos demais.
– Mas nós o fizemos. Nós somos as autoridades no município, Miss Emily.
A senhora não recebeu a notificação assinada pelo delegado?
– Sim, recebi um papel – disse Miss Emily. – Talvez ele se considere
realmente o delegado… Não tenho impostos a pagar em Jefferson.
– Mas não há, nos livros, nada que o possa provar. Veja a senhora… É
preciso que nós…
– Procurem o Coronel Sartóris. Não tenho impostos a pagar em Jefferson.
– Mas, Miss Emily –
– Procurem o Coronel Sartóris. (Havia quase dez anos que o Coronel
Sartóris estava morto) – Não tenho impostos a pagar em Jefferson. Tobe! – O
negro apareceu. – Acompanha estes cavalheiros.
Assim ela os venceu irremediavelmente,
como já lhes vencera os pais, trinta anos antes, a respeito do cheiro. Isso
aconteceu dois anos após a morte de seu pai, e quase em seguida à ocasião em
que o namorado – aquele mesmo que nós pensávamos iria se casar com ela – a
abandonou. Aquela morte e o abandono do namorado fizeram que ela depois pouco
saísse de casa. Algumas senhoras tiveram a temeridade de ir visitá-la, mas não
foram recebidas e, naquela casa, o único sinal de vida era o negro – ainda
moço, então – que entrava e saía com um cesto de compras.
– Como se um homem – seja quem for! – pudesse conservar limpa uma
cozinha! – diziam as senhoras. Assim, ninguém se surpreendeu quando se começou a
sentir o cheiro. Foi um novo laço que se estendeu entre a gente grosseira e
prolífica do bairro e os grandes e poderosos Grierson.
Uma mulher, sua vizinha, foi queixar-se
ao prefeito, Juiz Stevens, que contava, então, oitenta anos.
– Mas que quer a senhora que eu faça? – perguntou ele,
– Ora, que ela acabe com isso – disse a mulher. Não existe lei?
– Estou certo de que não será necessário – afirmou o Juiz Stevens.
Provavelmente, é só uma cobra ou um rato que o negro matou no quintal. Amanhã
falarei com ele a esse respeito.
No dia seguinte, recebeu duas novas
queixas; uma partiu de um homem, que apresentou uma súplica tímida.
– Nós precisamos, realmente, fazer alguma coisa nesse caso, sr. Juiz. Eu
seria a última pessoa neste mundo capaz de incomodar Miss Emily, mas precisamos
fazer alguma coisa.
Nessa mesma noite, reuniu-se o Conselho
Municipal: três barbas grisalhas e um rapaz moço, membro da nova geração.
– A coisa é muito simples – disse o moço. – Mandem. lhe dizer para
limpar a casa. Deem-lhe um certo prazo para obedecer e, se ela não…
– Deus me livre, senhor! – exclamou o Juiz Stevens. Quer então dizer a
uma senhora, nas bochechas, que ela cheira mal?
Assim, na noite seguinte, de madrugada,
quatro homens atravessaram o gramado do jardim de Miss Emily e, como
assaltantes, rondaram a casa, farejando os alicerces de tijolos e os
respiradouros do porão, enquanto um deles, com um saco nos ombros, fazia, com
regularidade, o gesto do semeador. Arrombaram a porta da adega, que salpicaram
de cal, assim como todas as dependências. Quando, de volta, atravessaram o
gramado, uma janela, até então sombria, iluminou-se de repente e viram Miss
Emily sentada à contraluz, ereta, rígida, imóvel como um ídolo. Atravessaram em
silêncio o gramado, metendo-se por entre as sombras das acácias que margeavam a
rua. Depois de uma ou duas semanas, o cheiro desapareceu.
Isso foi quando as pessoas começaram
realmente a ter pena dela. A gente de nossa cidade, que se lembrava de Lady
Wyatt, sua tia-avó, que acabara louca, achava que os Grierson se julgavam muito
mais importantes do que eram na realidade. Nenhum dos rapazes da cidade fora
jamais considerado à altura de Miss Emily. Nós os imaginávamos muitas vezes
como um quadro: ao fundo, Miss Emily, esguia figura vestida de branco; no primeiro
plano, a silhueta de seu pai, virando-lhe as costas, com as pernas abertas, um
chicote na mão; ambos, enquadrados pelos caixilhos da porta escancarada. Assim,
quando ela chegou aos trinta anos ainda solteira, não posso dizer que isso
tenha causado uma verdadeira alegria, mas nós, os rapazes, nos sentimos
vingados; mesmo com os casos de loucura na família, ela não teria virado as
costas a todas as oportunidades, se essas se tivessem verdadeiramente
materializado.
Morto o pai, correu o boato de que só
lhe tinha ficado a casa de herança, o que, de certo modo, alegrou todo mundo.
Até que enfim, podiam apiedar-se de Miss Emily. Sozinha e na pobreza, iria
humanizar-se. Agora, ela também conheceria a velha satisfação e o velho
desespero de um vintém a mais ou de um vintém a menos.
No dia seguinte ao da morte do velho,
as senhoras da cidade preparavam-me para ir à sua casa, apresentar-lhe os
pêsames, conforme o costume. Miss Emily recebeu-as no limiar da porta, vestida
como nos outros dias, e sem a menor marca de tristeza ou sofrimento na
expressão. Disse-lhes que o pai não tinha morrido. Repetiu essas palavras
durante três dias, quando os pastores e os médicos iam vê-la, tentando
persuadi-la a deixar dispor do cadáver. Mas, no momento em que estavam
resolvidos a recorrer à Lei e à força, ela cedeu, e enterraram-lhe o pai a toda
pressa.
Não se disse, então, que estava louca.
Pensamos que tinha agido como devia. Lembrávamo-nos de todos os moços que seu
pai afastara, e sabíamos que, achando-se sem nada, ela deveria agarrar-se
àquele que a despojara de tudo, como em geral acontece.
Esteve muito tempo doente. Quando
tornamos a vê-la, tinha os cabelos cortados, o que a fazia parecer uma menina e
lhe dava uma vaga semelhança com os anjos dos vitrais de igreja – uma mistura
de trágico e sereno.
A cidade acabava justamente de firmar o
contrato para pavimentação das calçadas e, no verão que seguiu a morte de seu
pai, começaram os trabalhos. A companhia construtora trouxe negros, mulas e
máquinas, e um contramestre chamado Homer Barron, um “yankee”, homem grande,
moreno e decidido, com um vozeirão enorme e olhos mais claros do que a pele do
rosto. Os garotos seguiam-no aos bandos, para ouvi-lo gritar com os negros, e
para ouvir os negros cantando em compasso, enquanto erguiam e abaixavam a
picareta. Em breve, o contramestre conhecia toda a gente da cidade. Cada vez
que se ouviam ruidosas gargalhadas na praça, podia-se jurar que Homer Barron
estava no centro do grupo. Não tardamos a avistá-lo, nos domingos à tarde,
passeando com Miss Emily na carriola de aluguel, que tinha rodas amarelas e era
puxada por uma parelha de cavalos baios.
A princípio, todos ficaram satisfeitos
de ver que Miss Emily tinha agora um interesse na vida. As senhoras andavam
dizendo: “Naturalmente, nunca uma Grierson tomará a sério um nortista, um
assalariado.”
Mas havia outras pessoas, as mais
velhas, que achavam que nem mesmo o desgosto deveria fazer que uma verdadeira
senhora se esquecesse de que “noblesse oblige”. (Sem no entanto, empregar essa
expressão: Noblesse oblige). Diziam, apenas: “Pobre Emily. Os parentes deviam
procurá-la.”
Tinha parentes em Alabama, mas, alguns
anos antes, o pai rompera com eles por causa da herança da velha Lady Wyatt, a
louca, e não havia mais relações entre as duas famílias. Nem sequer se tinham feito
representar no enterro.
E, mal a gente velha exclamou “Pobre
Emily”, os mexericos começaram: “Vocês imaginam que, realmente. . .” diziam uns
para os outros. – “Mas nem há dúvida. Porque, a não ser isso. . ” tudo
sussurrado atrás das mãos no amarrotado farfalhar de sedas e cetins por detrás
das janelas fechadas ao sol das tardes de domingo, enquanto a parelha de
cavalos baios passava num leve e apressado clop-clop-clop. – “Pobre Emily!”
Ela, porém, erguia a cabeça bem alto,
mesmo quando pensávamos que tinha decaído. Parecia, mais do que nunca, exigir
que se reconhecesse sua dignidade de última dos Grierson, como se fosse
necessário aquele toque de vulgaridade terrestre para acentuar mais
profundamente a sua impenetrabilidade. Tal como no dia em que comprou o veneno
para ratos, o arsênico. Isso aconteceu um ano depois de terem começado a dizer:
“Pobre Emily”, e quando as duas primas
estavam hospedadas em sua casa.
– Quero comprar veneno – disse ao farmacêutico. Contava, então, mais de
trinta anos; era ainda delgada, embora estivesse mais magra do que de costume,
com os olhos negros, altivos e frios num rosto cuja pele se repuxava na altura
das têmporas e em volta das pálpebras, como se imaginava que deveria ser o
rosto de um guardião de farol. – Quero comprar veneno.
– Pois não, Miss Emily. Que espécie de veneno? para ratos ou qualquer
coisa assim? Recomen…
– Quero o que o senhor tiver de melhor. Não importa qual seja.
O farmacêutico citou alguns:
– Matariam até mesmo um elefante. Mas o que a senhora quer e…
– Arsênico – disse ela. – É bom?
– É… arsênico? Pois sim, senhora. Mas o que a senhora quer ….
– Eu quero arsênico.
– Pois, naturalmente – disse ele. – Se é isso que a senhora quer. Porém,
a lei determina que a senhora declare o fim que dará ao veneno.
Miss Emily limitou-se a fitá-lo, com a
cabeça pendida para melhor fixar os olhos nos olhos dele, até forçá-lo a
desviar o olhar e a ir buscar o arsênico, que embrulhou. O caixeiro negro que
fazia entregas trouxe-lhe o pacote, pois o farmacêutico não tornou a aparecer.
Ao chegar em casa, tirou o papel; na tampa da caixa, debaixo da caveira e os
dois ossos, estava escrito: “Para ratos”.
Assim, no dia seguinte, nós dizíamos:
“Ela vai suicidar-se”, e achávamos que era a melhor solução. Quando começáramos
a vê-la com Homer Barrou, tínhamos dito: “Vai casar-se com ele”. Depois,
dizíamos: “Ela ainda acabará por persuadi-lo”, porque o próprio Homer observava
– gostava da companhia dos homens e sabia-se que bebia com os rapazes no Elk’s
Club – que não era feito para casamento. Mais tarde, dissemos: “Pobre Emily”,
por detrás das venezianas, quando ambos passavam, nas tardes de domingo, na
carriola vistosa, Miss Emily de cabeça erguida e Homer Barrou com o chapéu de
lado e um charuto entre os dentes, segurando as rédeas e o chicote nas luvas
amarelas.
Então, algumas senhoras começaram a
declarar que aquilo era uma vergonha para a cidade e um mau exemplo para a
gente moça. Os homens não ousavam intervir, mas, finalmente, as mulheres
forçaram o pastor batista – a gente de Miss Emily era episcopal – a ir
procurá-la. O pastor negou-se sempre a contar o que acontecera durante a
entrevista e recusou-se a voltar à sua casa. No domingo seguinte, saíram juntos
novamente e, no outro dia, a mulher do ministro escreveu aos parentes de Miss
Emily, em Alabama.
Dessa forma, ela teve pessoas de seu
sangue outra vez debaixo de seu teto e nós ficamos todos à espera dos
acontecimentos. A princípio, nada aconteceu. Depois, ficamos convencidos de que
iam se casar. Soubemos que Miss Emily fora à joalheria e encomendara um jogo de
toucador para homem, todo de prata, com as iniciais II. B. gravadas em cada
peça. Dois dias mais tarde, fomos informados de que comprara um enxoval
masculino completo, inclusive uma camisola de dormir, e dissemos: “Estão
casados”. E ficamos contentes, porque as duas primas eram mais Grierson ainda
do que Miss Emily jamais o fora.
Não tivemos grande surpresa quando,
terminado o calçamento das ruas, Homer Barron partiu. Sentimo-nos um pouco
decepcionados por não ter havido nenhuma manifestação pública de regozijo, mas
julgamos que se tivesse afastado para preparar a ida de Miss Emily, ou para lhe
dar a oportunidade de se livrar das primas. (Por essa época formáramos uma
verdadeira cabala, e éramos todos aliados de Miss Emily no sentido de ajudá-la
a alijar as primas). O que é certo é que elas partiram ao fim de outra semana.
E, como esperávamos, no terceiro dia após essa partida, Homer Barron estava de
volta à cidade. Os vizinhos viram o negro abrir-lhe a porta da cozinha, uma
tarde ao escurecer.
Foi essa a última vez que vimos Homer
Barron. E, durante algum tempo, não tornamos também a ver Miss Emily. O negro
ia e vinha com a cesta das compras, mas a porta da entrada continuava fechada.
Uma vez ou outra conseguimos avistá-la à janela por alguns instantes, como
naquela noite em que os homens foram à sua casa espalhar a cal; durante mais de
seis meses, porém, ela não apareceu nas ruas. Compreendemos que isso também era
de esperar; como se aquele aspecto do caráter de seu pai, que tantas vezes
constrangera sua vida de mulher, fosse virulento e furioso demais para morrer
assim.
Quando a vimos novamente, Miss Emily
tinha engordado muito e seus cabelos estavam ficando grisalhos. Nos anos
seguintes, foram ficando cada vez mais grisalhos, até o momento em que, tendo
adquirido um tom cinzento-de-aço, sua cabeleira não mudou mais de cor. Até o
dia de sua morte, aos setenta e quatro anos, aqueles cabelos conservavam ainda
esse vigoroso tom cinzento-de-aço, como os cabelos de um homem ativo.
Desde aquela época, sua porta ficara
fechada, exceto no decorrer de um período de seis ou sete anos, quando ela,
quarentona, dava aulas de pintura em porcelana. Instalara, num aposento do
andar térreo, o atelier onde as filhas e netas dos contemporâneos do Coronel
Sartóris lhe eram enviadas com a mesma regularidade e dentro do mesmo espírito
com que as mandavam à igreja, nos domingos, munidas de uma moedinha de vinte
centavos para a hora da coleta. Nesse ínterim, Miss Emily se vira dispensada do
pagamento de impostos.
A nova geração tornou-se, então, a
espinha dorsal e a alma da cidade, as alunas cresceram e dispersaram-se, e não
lhe mandaram as filhas com as caixinhas de tinta, os aborrecidos pincéis e os
modelos recortados das revistas ilustradas femininas. A porta fechou-se sobre a
última aluna e ficou fechada desde então. Quando a cidade adotou a distribuição
gratuita do correio, Miss Emily foi a única pessoa que se negou a consentir que
fixassem um número de metal acima de sua porta e uma caixa postal ao lado. Não
houve argumento que a convencesse.
Dias, meses e anos, vimos o negro, cada
vez mais grisalho e curvado, entrando e saindo com a cesta de compras.
Anualmente, em dezembro, mandavam-lhe a declaração de impostos, que o correio
devolvia na semana seguinte, com a nota de não haver sido reclamada. Uma vez ou
outra, nós a avistávamos diante da janela do andar térreo – tinha,
evidentemente, fechado todo o andar superior da casa – semelhante ao busto
esculpido de um ídolo no seu nicho, e nunca chegamos a saber se estava olhando
para nós, ou se nem sequer nos via. E assim passou ela de geração para geração
– querida, inevitável, impenetrável, tranquila e perversa.
E, então, ela morreu. Caiu doente no
seu casarão cheio de sombras e de pó, tendo como único auxílio o negro caduco.
Nem ao menos soubéramos que estava doente, pois havia já muito tempo que
desistíramos de arrancar qualquer informação ao negro. Não falava com pessoa
alguma, talvez nem mesmo com ela; sua voz se tornara áspera e rouquenha como
uma voz que não serve nunca.
Morreu num dos quartos do andar térreo,
numa cama de nogueira maciça com cortinados, a cabeça grisalha erguida por um
travesseiro amarelo e mofado pelo tempo e pela falta de sol.
O negro encontrou a primeira das
senhoras na porta da frente; deixou-as entrar, com suas vozes sussurradas e
sibilantes, com seus olhares rápidos, furtivos e curiosos, e depois
desapareceu. Meteu-se pela casa a dentro, atravessou-a toda, saiu pelos fundos
e sumiu para sempre.
A duas primas não tardaram a chegar.
Fizeram o enterro no segundo dia. A cidade em peso compareceu para ver Miss
Emily coberta por um montão de flores compradas, o retrato, a carvão, de seu
pai profundamente pensativo, acima do caixão, cercado pelas senhoras sibilantes
e macabras. No saguão e no gramado, homens, muito velhos – alguns nos uniformes
de confederados muito bem escovadinhos – falavam de Miss Emily como se fosse
uma de suas contemporâneas, imaginando que tinham dançado com ela, e até mesmo,
talvez, que a tinham namorado, confundindo o tempo e a progressão matemática,
como fazem os velhos, para os quais o passado não é uma estrada que se vai
encurtando, porém uma vasta planície nunca atingida pelo inverno, dividida para
eles, agora, pelo estreito gargalo da ampulheta dos últimos dez anos.
Nós todos já sabíamos da existência,
naquela região, do andar superior, onde ninguém pisara há quarenta anos, de um
quarto fechado que seria preciso arrombar. Esperamos que Miss Emily estivesse
docemente enterrada, antes de forçá-lo.
A violência com que pusemos a porta abaixo
pareceu encher o quarto de uma poeira penetrante. Era como se uma mortalha,
tênue e acre, se estendesse sobre todas as coisas daquele quarto, mobiliado e
enfeitado para urna noite de núpcias: sobre as desbotadas cortinas de pesada
seda cor-de-rosa, sobre os quebra. Luzes rosados das lâmpadas, sobre a
penteadeira, sobre os delicados objetos de cristal, sobre as peças do aparelho
de toucador para homem, com seus dorsos de prata embaciados, tão embaciados que
nem se distinguiam os monogramas escurecidos.
Entre os pertences do toucador, estavam
jogados um colarinho e uma gravata, como se tivessem acabado de tirá-los
naquele momento; quando os levantamos, deixaram na superfície uma pálida meia
lua traçada na poeira. O terno de roupa estava dobrado cuidadosamente numa
cadeira, debaixo da qual se viam os dois sapatos mudos e as meias largadas no
chão.
E o homem estava deitado na cama.
Durante muito tempo, ali ficamos,
imóveis, olhando para o seu ricto profundo e descarnado, O corpo devia ter, a
principio, repousado na atitude de carícia, abraçado a outro corpo, mas agora o
grande sono que sobrevive ao amor, o grande sono que vence até mesmo as
carícias do amor, dominara-o afinal. O que restava dele, em decomposição dentro
do que restava de sua camisola de dormir, tornara-se inseparável do leito em
que jazia; e sobre ele, assim como sobre o travesseiro vazio ao seu lado,
estendera-se aquela camada espessa de paciente e obstinada poeira.
Notamos, então, que no segundo travesseiro havia a marca funda de uma cabeça. Um de nós encontrou qualquer coisa caída sobre esse travesseiro e, debruçando-se, enquanto a leve, impalpável poeira acre e seca, nos entrava pelas narinas, vimos um longo fio de cabelo de um tom cinzento-de-aço.
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