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Mostrando postagens de julho, 2021

Eu - Florbela Espanca

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Eu sou a que no mundo anda perdida Eu sou a que na vida não tem norte Sou a irmã do Sonho, e desta sorte Sou a crucificada... a dolorida   Sombra de névoa ténue e esvaecida E que o destino amargo, triste e forte Impele brutalmente para a morte! Alma de luto sempre incompreendida!   Sou aquela que passa e ninguém vê Sou a que chamam triste sem o ser Sou a que chora sem saber porquê   Sou talvez a visão que Alguém sonhou Alguém que veio ao mundo pra me ver E que nunca na vida me encontrou!

SONETO XVII (...) Pablo Nerud

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Amo-te como a planta que não floriu e tem dentro de si, escondida, a luz das flores, e, graças ao teu amor, vive obscuro em meu corpo o denso aroma que subiu da terra. Amo-te sem saber como, nem quando, nem onde, amo-te diretamente sem problemas nem orgulho: amo-te assim porque não sei amar de outra maneira, a não ser deste modo em que nem eu sou nem tu és, tão perto que a tua mão no meu peito é minha, tão perto que os teus olhos se fecham com meu sono.  

E Eis – Clarice Lispector

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(pintura de Ivan Alifan) E eis que em breve nos separaremos E a verdade espantada é que eu sempre estive só de ti e não sabia Eu agora sei, eu sou só Eu e minha liberdade que não sei usar Mas, eu assumo a minha solidão Sou só, e tenho que viver uma certa glória íntima e silenciosa Guardo teu nome em segredo Preciso de segredos para viver E eis que depois de uma tarde de quem sou eu E de acordar a uma hora da madrugada em desespero Eis que as três horas da madrugada, acordei e me encontrei Fui ao encontro de mim, calma, alegre, plenitude sem fulminação Simplesmente eu sou eu, e você é você É lindo, é vasto, vai durar Eu não sei muito bem o que vou fazer em seguida Mas, por enquanto, olha pra mim e me ama Não, tu olhas pra ti e te amas É o que está certo Eu sou antes, eu sou quase, eu sou nunca E tudo isso ganhei ao deixar de te amar Escuta! Eu te deixo ser… Deixa-me ser!

Aprendimentos – Manoel de Barros

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(pintura de Jan van Kessel) O filósofo Kierkegaard me ensinou que cultura é o caminho que o homem percorre para se conhecer. Sócrates fez o seu caminho de cultura e ao fim falou que só sabia que não sabia de nada. Não tinha as certezas científicas. Mas que aprendera coisas di-menor com a natureza. Aprendeu que as folhas das árvores servem para nos ensinar a cair sem alardes. Disse que fosse ele caracol vegetado sobre pedras, ele iria gostar. Iria certamente aprender o idioma que as rãs falam com as águas e ia conversar com as rãs. E gostasse mais de ensinar que a exuberância maior está nos insetos do que nas paisagens. Seu rosto tinha um lado de ave. Por isso ele podia conhecer todos os pássaros do mundo pelo coração de seus cantos. Estudara nos livros demais. Porém aprendia melhor no ver, no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar. Chegou por vezes de alcançar o sotaque das origens. Se admirava de como um grilo sozinho, um só pequeno grilo, podia desmontar os silêncios de uma noite! E

Agora Escrevo Pássaros – Julio Cortázar

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Agora escrevo pássaros. Não os vejo chegar, não escolho, de repente estão aí, um bando de palavras a pousar uma por uma nos arames da página, entre chilreios e bicadas, chuva de asas, e eu sem pão para dar, tão somente deixo-os vir. Talvez seja isto uma árvore, ou quem sabe, o amor.  

A Vida – Augusto Branco

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Já perdoei erros quase imperdoáveis, tentei substituir pessoas insubstituíveis e esquecer pessoas inesquecíveis.   Já fiz coisas por impulso, já me decepcionei com pessoas que eu nunca pensei que iriam me decepcionar, mas também já decepcionei alguém.   Já abracei pra proteger, já dei risada quando não podia, fiz amigos eternos, e amigos que eu nunca mais vi.   Amei e fui amado, mas também já fui rejeitado, fui amado e não amei.   Já gritei e pulei de tanta felicidade, já vivi de amor e fiz juras eternas, e quebrei a cara muitas vezes!   Já chorei ouvindo música e vendo fotos, já liguei só para escutar uma voz, me apaixonei por um sorriso, já pensei que fosse morrer de tanta saudade e tive medo de perder alguém especial (e acabei perdendo).   Mas vivi! E ainda vivo! Não passo pela vida. E você também não deveria passar!   Viva!!   Bom mesmo é ir à luta com determinação, abraçar a vida com paixão, perder com class

OS HOMENS OCOS - T.S.Eliot

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T.S.Eliot - o poeta, o crítico, o ensaísta, o dramaturgo - encarna uma das mais estranhas e poderosas permanências literárias de nossa época. Estranha, porque foi ele, acima de qualquer outro, o escritor contemporâneo que mais conscientemente buscou, na tradição cultural do passado, o sentido de um tempo presente que, por estar sempre vindo a sê-lo, fosse também futuro; poderosa, porque sua obra, a um só tempo clássica e moderna, revolucionária e reacionária, realista e metafísica, está na própria raiz que informa e conforma a mentalidade poética de nossos dias, tendo exercido fecunda e duradoura influência sobre todas as gerações que se formaram a partir de 1930.   Nós somos os homens ocos Os homens empalhados Uns nos outros amparados O elmo cheio de nada. Ai de nós! Nossas vozes dessecadas, Quando juntos sussurramos, São quietas e inexpressas Como o vento na relva seca Ou pés de ratos sobre cacos Em nossa adega evaporada   Fôrma sem forma, sombra sem cor Força

“Abrigo na tempestade de areia”, Calvin Lai

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 “Abrigo na tempestade de areia”, Calvin Lai Em certas ocasiões, o destino se assemelha a uma pequena tempestade de areia, cujo curso sempre se altera. Você procura fugir dela e orienta seus passos noutra direção. Mas então, a tempestade também muda de direção e o segue. Você muda mais uma vez seu rumo. A tempestade faz o mesmo e o acompanha. As mudanças se repetem muitas e muitas vezes, como num balé macabro que se dança com a deusa da morte antes do alvorecer. Isso acontece porque a tempestade não é algo independente, vindo de um local distante. A tempestade é você mesmo. Algo que existe em seu íntimo. Portanto, o único recurso que lhe resta é se conformar e corajosamente pôr um pé dentro dela, tapar olhos e ouvidos com firmeza a fim de evitar que se encham de areia e atravessá-la passo a passo até emergir do outro lado. É muito provável que lá dentro não haja sol, nem lua, nem norte e, em determinados momentos, nem hora certa. O que há são apenas grãos de areia finos e brancos com

Uma Rosa Para Emília - William Faulkner

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Quando Miss Emily Grierson morreu, toda a nossa cidade compareceu ao enterro: os homens em atenção a essa espécie de carinho respeitoso que se tem por um monumento tombado; as mulheres movidas pela curiosidade de ver o interior de sua casa, onde ninguém entrara nos últimos dez anos, exceto um velho negro, ao mesmo tempo cozinheiro e jardineiro. Era um casarão quadrado, de madeira, outrora branco, decorado de cúpulas, de flechas, de balcões, no estilo pesadamente frívolo da época de 1870, situado na rua que já tinha sido a mais distinta da cidade. Mas as garagens e as debulhadoras de algodão, multiplicando-se em derredor, acabaram por fazer desaparecer até os nomes augustos daquele bairro. A casa de Miss Emily era a única, levantando sua decrepitude teimosa e faceira acima dos vagões de algodão e das bombas de gasolina. Emily tinha ido juntar-se aos representantes daqueles nomes augustos, no cemitério adormecido sob os cedros, onde jaziam entre os túmulos enfileirados e anônimos, dos