domingo, 20 de fevereiro de 2022

Evidências da imortalidade nas recordações de infância

Caspar David FRIEDRICH (1774-1840) Andarilho sobre o mar de neblina, ca. 1817 Óleo sobre tela.



Evidências da imortalidade nas recordações de infância.

– Trecho do poema de William Wordsworth.

"Houve um tempo
em que prados, bosques, riachos
a terra, e cada visão comum
aparentava a mim
vestir a luz celestial
a glória e frescura de um sonho.
Não é de agora mais do que outrora.
Devo ir a outro lugar
de noite ou de dia.
As coisas que eu já vi, agora não vejo mais."


Poema completo:

I

Houve um tempo em que a relva, a fonte, o rio, a mata
         E o horizonte se vestiam
                  De uma luz grata,
         — Visto que assim me pareciam —,
E da opulência que nos sonhos é inata.
Hoje está sendo tal como foi outrora;—
         Seja o que for, eu,
         Na luz ou breu,
Eu não verei jamais o que se foi embora.

II

                  O arco-íris vai, vem,
                  E a rosa nos faz bem;
                  Alegre, a lua nota
Que o céu está completamente nu; à luz
                  De estrelas, a água brota
         E é belo o que ela reproduz;
         A aurora é sempre um nascimento;
         E contudo, eu sei muito bem
Que a glória passou por nós em algum momento.

III

Agora, enquanto as aves cantam de contento
         E enquanto o cordeirinho salta
                  Ao som do que o exalta,
A mim apenas veio uma ideia de dor:
Enunciei-o e de repente ela passou,
                  E me encho de alento:
Trombeteiam cascatas frente ao precipício;
Minha dor não mais matará o clima opulento;
Ouço o Eco que vem das grutas e ouço o Vento
Que encerra em si o sono tal como um resquício,
         E alegre é a terra;
                  Todo o mar
         Vem a se ufanar
                  E a Fera se aferra
         Ao sono na serra;—
                  Você, Criança,
Menino pastor, grite até onde, Ó Criança, o grito alcança!

IV

E vocês, Criaturas, eu escuto afinal
         O que dizem entre vocês
E vejo o céu que frui também vossa altivez;
         Meu ser em vosso festival,
                  Coroado, o total
De vossa dádiva — ah!, eu sinto… Ó mal!,
                  Fosse eu soturno enquanto
                  A Terra se adornasse,
                           Manhã de Maio face
                  A qual a infância nasce
                           No Mundo,
                  No vale remoto e fecundo;
                  Enquanto o sol nos acalora
E o Bebê sobe aos braços da Mãe: — ouço agora!
                  Com alegria eu ouço, eu ouço!
                  — Mas uma, uma Árvore existe,
Uma Planície que em minh’alma inda persiste,
Lembrando o que se foi e hoje e me deixa triste:
                  E o Amor-Perfeito
                  Diz: Que foi feito
         Do vislumbre visionário?
         Dos sonhos? Do esplendor vário?

V

Nosso nascer não passa de sono e de oblívio:
A Alma que nasce com nós, nosso Astro Vital,
         Vive longe de onde vive o
                  Trajeto de seu fanal;
         Não no esquecimento inteiro
         Nem na nudez por inteiro,
Mas, arrastando nuvens de glória, viemos
         De Deus — nele vivemos —:
É o Céu que a nós circunda e a nossa meninice!
As sombras da prisão começam a cobrir
                  O Menino que cresce;
Mas ele vê a luz, sabe aonde ela vai ir
                  E sabe que ela o acresce;
A Juventude, em sacerdócio à Natureza,
         Viaja ao Leste numa empresa
                  Guiada pela
                  Visão mais bela;
E ao largo o Homem vê que sua vida acaba
E que na luz do hábito ela enfim desaba.

VI

A Terra enche o colo com prazeres seus;
A Terra possui ânsias que ela mesma mantém,
E, possuindo um algo maternal também,
                  E honesta em seu intuito,
         A Terra, ama-de-leite, empenha-se
P’ra que o filho adotivo, a Humanidade, abstenha-se
         De todos seus apogeus
E do que nele for trajetória e for muito.

VII

Aprecie a Criança e a plêiade de encantos,
Tesouro de seis anos menor que um pigmeu!
Contemple a paz com que ele enfim adormeceu,
Preocupado co’os beijos de sua mãe, tantos!,
E as tantas bênçãos que seu pai lhe concedeu!
Veja, a seus pés, alguma tabela infantil,
Algum fragmento de seu sonho de ser humano,
Moldado graças a uma arte ainda pueril;
         Um casamento ou um festival,
         Um lamento ou um funeral;
                  E a isto ele é servil,
E nisto ele forma seu canto:
                  Assim afinar-se-á enquanto
Dialoga sobre o amor, o sucesso ou o dano;
                  Não demorará tanto
                  Até que largue isto
                  E de novo, e imprevisto,
Com alegria o Ator mirim faça outro ardil;
Enchendo pouco a pouco sua própria “farsa”
De Personagens, ‘té que a Vida fique esparsa
E, colocando-o na barca, a Vida o ressarça;
                  Como se imitar fosse
                  Tudo o que ele fosse.

VIII

Você, cujo semblante exterior desmente
                  Teu valor inerente;
Você, grande Filósofo, que mantém ainda
A herança; você, que é a Visão entre a cegueira,
Que, surdo e mudo, lê a profundeza infinda
Sempre assombrada pela mente altaneira, —
                  Ó Vidente!, Ó Profeta!
                  Que a verdade afeta
E a quem nós procuramos de qualquer maneira,
Por toda a vida, presos no escuro da cova;
Você, sobre quem flui a Fonte da Existência
Que escraviza ao mesmo tempo que renova,
Algo impossível de se ignorar a presença;
                  A quem a cova
É cama solitária sem sentido ou luz
                  Do que lá fora luz,
Um lugar onde se descansa e onde se pensa;
Você, Criança, ainda ilustre na amplitude
Da aérea liberdade de tua atitude,
P’ra quê, com dores tão solenes, provocar
Os anos a te darem o que eles vão te dar,
Assim tão cega e santa imersa na batalha?
Não tarda e teu espírito cai no retardo
De uma rotina que imporá a ti um fardo
Que pese e quase como a vida se equivalha!

IX

                  Alegria!, que em nós
                  Inda palpita
                  E repercute a voz —
                  E nos evita!
Pensar no meu passado faz com que em mim nasça
Uma bênção perpétua: não aquela graça
Que glorifica aquele a quem ela agracia —
Prazer e liberdade, o credo que perpassa
A Infância inteira, na labuta ou calmaria,
Pleno do tatalar da fé que se atavia:—
                  Nem por estes elevo
                  Canções de louvor e enlevo;
         Mas pelas questões obstinadas
         De senso e coisas externadas
         Distantes de nós, sublimadas;
         Vagos temores da Criatura
Que vaga em meio a mundos não realizados,
Altos instintos onde a efêmera Figura
Treme tal como tremem os Sentenciados:
                  Por tais afetos prévios
                  E recordações breves, o
         Que vierem a ser, sejam,
Pois são fontes de luz e nos clarejam,
Pois são pontos de luz de nosso olhar;
         Guarde a estima por nós, guardando o seu poder
De que a turba dos anos se encurte no Ser
Da Calmaria imorredoura: o despertar
                  P’ra vida eterna:
O que a surdez e a insânia que às vezes governa,
                  O Pai, o Filho
E o que vê na alegria um odioso empecilho,
Não poderão matar nem retirar o brilho!
         Assim, sendo o clima propício,
                  Por distantes que estejamos,
Sentimos sempre aquele mar sem fim ou início
                  Que nos trouxe aonde estamos,
E vemos sempre a Infância que brinca na areia,
E ouvimos sempre o som do mar que assenhoreia.

X

Pois cantem, Aves, cantem canções de contento!
                  E que o Cordeiro salte,
                  Alegre, ao som que o exalte!
Nossas vozes serão uma só em pensamento,
         Você que brinca ou flauteia
         E que tem na sua veia
         O agrado que Maio alardeia!
Pois muito embora a glória, que antes cintilara,
Tenha tornado-se distante e coisa rara,
         E embora nada traga novamente a hora
Do esplendor no relvado, ou da flor que vigora;
                  Nós não vamos chorar; iremos
                  Achar forças no que tivemos
                  Um dia; no afeto primeiro
                  Que ainda se mantém inteiro;
                  No pensamento que consola
                  E medra quando a dor desola;
                  Na fé que enxerga além da morte
E na sabedoria do que nós vivemos.

XI

E vocês, Bosques, Fontes, Picos, Matagais,
Não previram que o amor já não seria mais!
E entanto, o coração de meu coração sente
O poder de vocês; eu abandonei somente
Um prazer p’ra viver vosso ciclo usual.
Amo o rio que em seu canal se convulsiona,
Mais do que quando, assim como ele, eu fui frugal;
A luz da Aurora é pura e, como habitual,
                  Emociona;
As nuvens que rodeiam o pôr-do-sol ganham
O tom-de-cor daquele olhar que mantivera
Vigília sobre nossa tênue Primavera;
Outras raças têm sido, e outras glórias se apanham.
Graças ao coração, que fizemos morada,
Graças a todo o seu temor, carinho e encanto,
Sei que da flor mais simples pode ser gerada
Meditação profunda demais para o pranto.

Augúrios da inocência - William Blake

Caminho Das Flores", Pintura por Silvana Oliveira

Poema completo:

"Ver o Mundo inteiro num Grão
Ver o Céu numa Flor Bravia
É ter o Infinito na mão
E a Eternidade num dia
Tordo preso numa Gaiola
E o Céu inteiro se Desola
Pombal com Rolinhas & Pombos
Leva todo o Inferno a escombros
Cão faminto às Portas de Casa
Prevê que o Estado se defasa
Cavalo largado na Pista
Quer Sangue & quer que o Céu o assista
Lebre que grita por ajuda
A nosso Cérebro desnuda
Rouxinol que no solo jaz
Querubim que não canta mais
Galo de Briga em pé de guerra
A todo Sol Nascente aterra
Todo Lobo & Leão uivando
Salvam do Inferno um Ser Humano
Este cervo que vaga ao léu
Leva o Ser Humano ao Céu
Cordeiro gera a Discórdia
Mas também a Misericórdia
Morcego plana no Poente
E larga o Cérebro Descrente
Coruja que convoca a Treva
Diz o que ao Incrédulo entreva
Ele que fere o Passarinho
Não saberá o que é o Carinho
Ele que o Touro trouxe à fúria
Só saberá o que é a Injúria
Moleque que mata um Mosquito
As Aranhas têm por maldito
Ele que atormenta o Besouro
Esconde do Escuro imorredouro
Larva-de-Inseto inda precoce
Te rediz que tua Mãe sofre
Não mate nunca a Borboleta
O Juízo Final se espreita
Ele aguerrido em Menoscabo
Não ultrapassará o Cabo
Gato de Velha & Cão de Pobre
Alimente-os & serás nobre
Inseto com Canções de Estio
No veneno do Ultraje caiu
Veneno de Lagarto & Cobra
Que do suor da Inveja sobra
Veneno vindo da Colmeia
É o que o Gozo Artístico ideia
Tesouro Imperial & Esmola
São Cogumelos na Sacola
Verdade dita como ofensa
Vence as Mentiras que se pensa
Ser assim é muito melhor
Só nos cabe Alegria & Dor
E tão logo sabemos disto
O Mundo é um lugar mais bem quisto
Alegria & Dor são tecidas
Vestes d’Almas enaltecidas
Sob cada pinheiro & desgraça
A sedosa alegria passa
Todo Bebê é mais que o Berço
Por todo este Humano Universo
Criadas mãos & Instrumentais
Cada Roceiro Entende mais
Cada Pranto de Cada Face
É um Bebê que no Eterno nasce
Isto é pego por Fêmeas rútilas
E torna de volta a seus júbilos
O Uivo o Balido & Rosnado
São Brisa no Celeste Prado
Bebê que teme o seu Castigo
Nutre Ódio e Massacre consigo
Andrajo adejando Ar afora
Age no Céu e o deteriora
Soldado armado com Baioneta
Assalta o Sol mesmo perneta
Trocados valem no total
Mais que todo Ouro oriental
Ácaro nas Mãos calejadas
Terras vendidas & compradas
Ou se acaso o alto o defenda
Faz que a Nação compre & revenda
Quem escarnece a Fé da Infância
A Morte trata co’ Arrogância
Quem ao Questionamento educa
Não sairá da Cova nunca
Quem respeita a Fé da Infância
Vence a Morte & sua Substância
Brincadeiras & Alegações
Frutos de duas Estações
Questionador que diz-se astuto
Não Discute nem um minuto
Quem contesta o Questionamento
Ganha o Dom do Discernimento
Veneno mais Eficiente
Vem do Soberano regente
Nada deforma a Raça Humana
Como a Armadura em Filigrana
Quando o Ouro adorna a Enxada
Faz-se às Artes Cara Fechada
Charada ou Chore o Gafanhoto
É boa Resposta ao Ignoto
Voo de Condor & Voo de Mosca
Distraem a Filosofia Tosca
Quem Questiona o que vê não Crê
Faça o que é melhor pra você
Se Sol & Lua Questionarem
Irão se Pôr sem aguardarem
Conter Paixão é sempre um Bem
Mas não se a Paixão te contém
O Estado ao Jogador & à Puta
Permita & a Nação é corrupta
Rua a Rua a Meretriz berra
Páginas de Velha Inglaterra
Vencedor que Ri de Quem Perde
Zomba Inglaterra estar inerte
Toda Noite & toda Manhã
A Existência de alguns é Vã
Toda Manhã & toda Noite
Alguns nasceram pro deleite
Alguns nasceram pro deleite
Outros pro Infinito da Noite
Tendemos a crer numa Farsa
Se só Olhar não Satisfaça
Quem nasce à Noite pra morrer na Noite
Dorme a Alma em Raios de Luz
Deus Aparece & Deus é Luz
Aos Pobres que moram na Noite
Na Forma Humana se anuncia
A quem Morar na Luz do Dia"


O dia em que Tennyson morreu



Título: “Ivan, o Terrível, e seu filho Ivan”Autor: Ilya Repin, 1885.





Trecho do poema In Memoriam A. H. H. OBIIT MDCCCXXXIII: 27, de Lord Tennyson.

“Eu não invejo em quaisquer humores
O cativo vazio de nobre raiva,
O pássaro nascido dentro da gaiola,
Que nunca conheceu as madeiras de verão.

Eu não invejo a besta que leva
Sua licença pelos campos do tempo,
Irrestrito pelo sentido de crime,
A quem uma consciência nunca desperta.

Nem ao que pode contar-se como abençoado,
O coração que nunca empenhou lealdade,
Mas estagna nas ervas daninha, coms da letargia,
Nem qualquer outro descanso.

Tenho por verdade,
Seja sobre o que recais;
Eu sinto quando estou mais triste;
É melhor ter amado e perdido
Do que nunca ter amado.”

– Trecho do poema Maud, como citado em Penny dreadful:

“Batam, estrelas felizes,
Junto com as coisas de baixo;
Batam com meu coração
Mais abençoado
do que posso dizer;
Abençoado, mas influenciado
por um sofrimento;
Que parece se esvair,
Mas não deve assim permanecer.
Deixe tudo ficar bem,
Ficar bem.”

A melodia de Wagner, Liebestod

Interior casa piano pintura óleo sobre lienzo firmado / | Etsy México

A melodia de Wagner, Liebestod. Apresentada na ópera de Tristão e Isolda é trilha da morte de ambos os personagens, condenados a um amor impossível. 
Wagner descrevia esta obra como "ações musicais tornadas visíveis." A música desta ópera rompeu vários paradigmas à época.

Trecho do libreto:
"Poderei compreender-te, ó velha e grave melodia de som de queixume?
Flutuando nas brisas do entardecer, chegaste um dia, melancólica, até mim, quando
ainda era menino, para anunciar-me a morte de meu pai. Mais ainda lamentosa ressoaste através da aurora cinzenta para revelar ao terno filho o destino materno. Quando
meu pai me gerou e morreu; quando minha mãe, moribunda, me deu à luz, a antiga
melodia, lânguida e dolente, transportava o lamento de seus ecos angustiosos. Como
então hoje me pergunto: a que destino fui consagrado? Para que nasci? Qual foi minha
sorte? A velha melodia mo repete agora: para desejar e morrer! Oh, não! Assim não o
diz! Desejar, desejar! Desejar até à morte, sem poder morrer de desejo! Imortal, invoca
agora, anelante, a longínqua dispensadora da saúde, para que eu possa morrer em paz.
Mudo, moribundo, jazia na barca. A melodia chorava suas queixas e desejos; o vento
encheu a vela, levando-nos até a filha da Irlanda. Ela curou minha ferida; com a espada
queria abri-la de novo... Mas deixou cair a arma, para oferecer-me um filtro envenenado... 
e quando eu esperava completa cura, me consagrou o encantamento mais danoso,
a fim de que jamais morresse, condenando-me ao suplício eterno. O’ filtro! A bebida!
Terrível filtro! Com ânsia furiosa me devoras o coração e o cérebro! Não há salvação,
não há doce morte que possa libertar-me da tortura do desejo. Em nenhum sítio me
é concedido repousar! A noite me impele ao dia para que eternamente minhas dores
deleitem a insaciável mirada do sol. Oh, como abrasa meu cérebro com o tormento
ardoroso de seus candentes raios! Nenhuma sombra noturna logra refrescar o ardente
fogo que assim me consome! Que bálsamo poderia aliviar o horrível martírio de semelhantes dores?"

Desencanto - Manuel Bandeira



O óleo sobre tela Melancolia, de Constance Charpentier, ilustra a segunda fase do romantismo.


Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

- Eu faço versos como quem morre.

  Manuel Bandeira, A cinza das horas, 1917.

Ainda assim eu me levanto - Maya Angelou

A Liberdade guiando o povo (em francêsLa Liberté guidant le peuple) é uma pintura de Eugène Delacroix.

Você pode me riscar da História
Com mentiras lançadas ao ar.
Pode me jogar contra o chão de terra,
Mas ainda assim, como a poeira, eu vou me levantar.

Minha presença o incomoda?
Por que meu brilho o intimida?
Porque eu caminho como quem possui
Riquezas dignas do grego Midas.

Como a lua e como o sol no céu,
Com a certeza da onda no mar,
Como a esperança emergindo na desgraça,
Assim eu vou me levantar.

Você não queria me ver quebrada?
Cabeça curvada e olhos para o chão?
Ombros caídos como as lágrimas,
Minh’alma enfraquecida pela solidão?

Meu orgulho o ofende?
Tenho certeza que sim
Porque eu rio como quem possui
Ouros escondidos em mim.

Pode me atirar palavras afiadas,
Dilacerar-me com seu olhar,
Você pode me matar em nome do ódio,
Mas ainda assim, como o ar, eu vou me levantar.

Minha sensualidade incomoda?
Será que você se pergunta
Porquê eu danço como se tivesse
Um diamante onde as coxas se juntam?

Da favela, da humilhação imposta pela cor
Eu me levanto
De um passado enraizado na dor
Eu me levanto
Sou um oceano negro, profundo na fé,
Crescendo e expandindo-se como a maré.

Deixando para trás noites de terror e atrocidade
Eu me levanto
Em direção a um novo dia de intensa claridade
Eu me levanto
Trazendo comigo o dom de meus antepassados,
Eu carrego o sonho e a esperança do homem escravizado.
E assim, eu me levanto
Eu me levanto
Eu me levanto.

Ausência - Vinicius de Morais, 1935.


Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

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Solitário - Augusto dos Anjos

Pintura: PHILLIP HERMOGENES CALDERON

Solitário


Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!

Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos contorta...
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!

Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí, como quem tudo repele,
- Velho caixão a carregar destroços -

Levando apenas na tumba carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!

Augusto dos Anjos ANJOS, A. Eu e Outras Poesias.

Meu pequeno Léxico