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Mostrando postagens de 2022

MENINO CHORANDO NA NOITE - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

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Na noite lenta e morna, morta noite sem ruído, um menino chora.  O choro atrás da parede, a luz atrás da vidraça perdem-se na sombra  dos passos abafados, das vozes extenuadas.  E no entanto se ouve até o rumor da gota de remédio caindo na colher.  Um menino chora na noite, atrás da parede, atrás da rua, longe um menino chora, em outra cidade talvez, talvez em outro mundo.  E vejo a mão que levanta a colher, enquanto a outra sustenta a cabeça e vejo o fio oleoso que escorre do queixo do menino, escorre pela rua, escorre pela cidade (um fio apenas).  E não há ninguém mais no mundo a não ser esse menino chorando.

AMAR POR AUSÊNCIA - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

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Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar?  amar e esquecer, amar e malamar, amar, desamar, amar?  sempre, e até de olhos vidrados, amar?  Que pode, pergunto, o ser amoroso, sozinho,  em rotação universal, senão rodar também, e amar?  amar o que o amar traz à praia, o que ele sepulta,  e o que, na brisa marinha, é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?  Amar solenemente as palmas do deserto,  o que é entrega ou adoração expectante,  e amar o inóspito, o áspero, um vaso sem flor,  um chão de ferro, e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.  Este o nosso destino: amor sem conta, distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,  doação ilimitada a uma completa ingratidão,  e na concha vazia do amor a procura medrosa, paciente, de mais e mais amor.  Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura  nossa amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

"E então, que queres?"

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Vladimir Maiakovski  Fiz ranger as folhas de jornal abrindo-lhes as pálpebras piscantes. E logo de cada fronteira distante subiu um cheiro de pólvora perseguindo-me até em casa. Nestes últimos vinte anos nada de novo há no rugir das tempestades. Não estamos alegres, é certo, mas também por que razão haveríamos de ficar tristes? O mar da história é agitado. As ameaças e as guerras havemos de atravessá-las, rompê-las ao meio, cortando-as como uma quilha corta as ondas." Vladimir Maiakovski (1927).

Poema de John Clare

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John Clare “Eu sou, mas o que sou ninguém se importa ou conhece, Meus amigos desistiram de mim, como uma memória perdida. Sou o consumidor das minhas próprias mágoas. Elas ascendem e desaparecem em chão estéril, como sombras em dores delirantes de um amor sufocado. E ainda assim eu sou, eu vivo – como vapores tremulantes.   Em meio a uma nada ruidoso e escarnescente, Em meio a um vivo mar de sonhos vigilantes, Onde não há sentido de vida ou alegrias, Só o vasto naufrágio das minhas aporias, E a mais desejada, a que eu amei mais, É-me estranha – ou pior, mais estranha que as mais.   Anseio por cenas onde o homem nunca trilhou. Um lugar onde as mulheres nunca sorriram ou choraram. Há a cumprir com o meu Criador, Deus. E dormir como eu dormia docemente na infância. Tranquilo e despreocupado onde repouso. A grama abaixo – por cima o céu abobadado.”   Pelo o que se sabe, o poeta John Clare tinha só 1,5m, assim considerado uma aberração. Talvez devid

Evidências da imortalidade nas recordações de infância

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Caspar David FRIEDRICH (1774-1840) Andarilho sobre o mar de neblina, ca. 1817 Óleo sobre tela. Evidências da imortalidade nas recordações de infância. – Trecho do poema de William Wordsworth. "Houve um tempo em que prados, bosques, riachos a terra, e cada visão comum aparentava a mim vestir a luz celestial a glória e frescura de um sonho. Não é de agora mais do que outrora. Devo ir a outro lugar de noite ou de dia. As coisas que eu já vi, agora não vejo mais." Poema completo: I Houve um tempo em que a relva, a fonte, o rio, a mata          E o horizonte se vestiam                   De uma luz grata,          — Visto que assim me pareciam —, E da opulência que nos sonhos é inata. Hoje está sendo tal como foi outrora;—          Seja o que for, eu,          Na luz ou breu, Eu não verei jamais o que se foi embora. II                   O arco-íris vai, vem,                   E a rosa nos faz bem;                   Alegre, a lua nota Que o céu está completamente nu; à luz          

Augúrios da inocência - William Blake

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Caminho Das Flores", Pintura por Silvana Oliveira "Ver o Mundo inteiro num grão de areia Ver o Céu numa Flor Bravia É ter o Infinito na mão E a Eternidade num dia" Poema completo: " Ver o Mundo inteiro num Grão Ver o Céu numa Flor Bravia É ter o Infinito na mão E a Eternidade num dia Tordo preso numa Gaiola E o Céu inteiro se Desola Pombal com Rolinhas & Pombos Leva todo o Inferno a escombros Cão faminto às Portas de Casa Prevê que o Estado se defasa Cavalo largado na Pista Quer Sangue & quer que o Céu o assista Lebre que grita por ajuda A nosso Cérebro desnuda Rouxinol que no solo jaz Querubim que não canta mais Galo de Briga em pé de guerra A todo Sol Nascente aterra Todo Lobo & Leão uivando Salvam do Inferno um Ser Humano Este cervo que vaga ao léu Leva o Ser Humano ao Céu Cordeiro gera a Discórdia Mas também a Misericórdia Morcego plana no Poente E larga o Cérebro Descrente Coruja que convoca a Treva Diz o que ao Incrédulo entreva Ele que fere o Pass

O dia em que Tennyson morreu

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Título: “Ivan, o Terrível, e seu filho Ivan” Autor: Ilya Repin, 1885. Trecho do poema In Memoriam A. H. H. OBIIT MDCCCXXXIII: 27, de Lord Tennyson. “Eu não invejo em quaisquer humores O cativo vazio de nobre raiva, O pássaro nascido dentro da gaiola, Que nunca conheceu as madeiras de verão. Eu não invejo a besta que leva Sua licença pelos campos do tempo, Irrestrito pelo sentido de crime, A quem uma consciência nunca desperta. Nem ao que pode contar-se como abençoado, O coração que nunca empenhou lealdade, Mas estagna nas ervas daninha, coms da letargia, Nem qualquer outro descanso. Tenho por verdade, Seja sobre o que recais; Eu sinto quando estou mais triste; É melhor ter amado e perdido Do que nunca ter amado.” – Trecho do poema Maud, como citado em Penny dreadful: “Batam, estrelas felizes, Junto com as coisas de baixo; Batam com meu coração Mais abençoado do que posso dizer; Abençoado, mas influenciado por um sofrimento; Que parece se esvair, Mas não deve assim permanecer. Deixe tud

A melodia de Wagner, Liebestod

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Interior casa piano pintura óleo sobre lienzo firmado / | Etsy México A melodia de Wagner, Liebestod. Apresentada na ópera de Tristão e Isolda é trilha da morte de ambos os personagens, condenados a um amor impossível.  Wagner descrevia esta obra como "ações musicais tornadas visíveis." A música desta ópera rompeu vários paradigmas à época. Trecho do libreto: "Poderei compreender-te, ó velha e grave melodia de som de queixume? Flutuando nas brisas do entardecer, chegaste um dia, melancólica, até mim, quando ainda era menino, para anunciar-me a morte de meu pai. Mais ainda lamentosa ressoaste através da aurora cinzenta para revelar ao terno filho o destino materno. Quando meu pai me gerou e morreu; quando minha mãe, moribunda, me deu à luz, a antiga melodia, lânguida e dolente, transportava o lamento de seus ecos angustiosos. Como então hoje me pergunto: a que destino fui consagrado? Para que nasci? Qual foi minha sorte? A velha melodia mo repete agora: para desejar e mor

Desencanto - Manuel Bandeira

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O óleo sobre tela Melancolia, de Constance Charpentier, ilustra a segunda fase do romantismo. Eu faço versos como quem chora De desalento... de desencanto... Fecha o meu livro, se por agora Não tens motivo nenhum de pranto. Meu verso é sangue. Volúpia ardente... Tristeza esparsa... remorso vão... Dói-me nas veias. Amargo e quente, Cai, gota a gota, do coração. E nestes versos de angústia rouca Assim dos lábios a vida corre, Deixando um acre sabor na boca. - Eu faço versos como quem morre.   Manuel Bandeira,  A cinza das horas , 1917.

Ainda assim eu me levanto - Maya Angelou

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A Liberdade guiando o povo  (em   francês :  La Liberté guidant le peuple ) é uma pintura de   Eugène Delacroix . Você pode me riscar da História Com mentiras lançadas ao ar. Pode me jogar contra o chão de terra, Mas ainda assim, como a poeira, eu vou me levantar. Minha presença o incomoda? Por que meu brilho o intimida? Porque eu caminho como quem possui Riquezas dignas do grego Midas. Como a lua e como o sol no céu, Com a certeza da onda no mar, Como a esperança emergindo na desgraça, Assim eu vou me levantar. Você não queria me ver quebrada? Cabeça curvada e olhos para o chão? Ombros caídos como as lágrimas, Minh’alma enfraquecida pela solidão? Meu orgulho o ofende? Tenho certeza que sim Porque eu rio como quem possui Ouros escondidos em mim. Pode me atirar palavras afiadas, Dilacerar-me com seu olhar, Você pode me matar em nome do ódio, Mas ainda assim, como o ar, eu vou me levantar. Minha sensualidade incomoda? Será que você se pergunta Porquê eu danço como se tivesse Um diamante

Ausência - Vinicius de Morais, 1935.

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Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto. No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz. Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado. Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado. Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos

Solitário - Augusto dos Anjos

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Pintura: PHILLIP HERMOGENES CALDERON Solitário Como um fantasma que se refugia Na solidão da natureza morta, Por trás dos ermos túmulos, um dia, Eu fui refugiar-me à tua porta! Fazia frio e o frio que fazia Não era esse que a carne nos contorta... Cortava assim como em carniçaria O aço das facas incisivas corta! Mas tu não vieste ver minha Desgraça! E eu saí, como quem tudo repele, - Velho caixão a carregar destroços - Levando apenas na tumba carcaça O pergaminho singular da pele E o chocalho fatídico dos ossos! Augusto dos Anjos  ANJOS, A. Eu e Outras Poesias.